06/12/2003

O Rapaz Azul by João Paulo Vieira

Era uma vez um rapaz azul que vivia na lua... Ele nunca soube como foi lá para. Passava os dias a correr, na verdade, não tinha outra opção. No dia em que se distraísse e não corresse no sentido contrário ao da rotação da lua, cairia no infinito. É que na lua (pelo menos naquela onde viva) existia uma gravidade bizarra: tudo o que ficasse de cabeça para baixo, caía, naturalmente (esta é uma das explicações possíveis para as chuvas de meteoros, que não são mais que pequenas pedras atiradas pelo rapaz azul, durante os momentos de reflexão). Ele tinha de palmilhar todos os dias muitos e muitos quilómetros e quilómetros para evitar a queda. Mas esta não era a única cruz que carregava. As estrelas remotas e minúsculas são o único pedaço de luz a que tem direito.
Um dia, deixou-se adormecer, aconchegado numa pequena cratera, e só acordou quando o corpo começou a deslizar sorrateiramente. Sobressaltado, levantou a cabeça e desatou a correr. O pânico aumentou-lhe o ritmo das passadas e disparou carradas de adrenalina para o sangue (obviamente azul). Com os sentidos mais alerta, não conseguiu evitar e olhou, de relance, para baixo. Viu uma bola gigante, iluminada e igualmente azulada (o tom de azul era mais brilhante que o da sua pele). Durante os muitos e muitos anos que se seguiram ao deslize, nem por ma vez conseguiu voltar a olhar para a grande bola luminosa. Embora a visse todos os dias, cada vez mais brilhante, na sua memória. Sempre que se deitava, desejava voltar a escorregar. Uma tentação que lhe aparecia em forma de sussurro, inconsciente e tentados, sempre que olhava a escuridão. Um dia, encheu-se de coragem, despediu-se das estrelas, companheiras e confidentes numa existência solitária, e mergulhou. A viagem já ia longa. Umas três horas. Pelo menos. A bola gigante atingia proporções descomunais, até que os pormenores se tornaram evidentes, até que... Trás! Objectivo atingido. O rapaz azul caiu dentro do saco de um senhor gordo, com barbas brancas, vestido de vermelho e que dizia, insistentemente, “oh, oh, oh!. Olhou em redor e ficou pasmado com o cenário: muitas luzes, cores sem fim, ruídos que nunca tinha ouvido e muitos seres parecidos com ele, mas bastante maiores: estavam todos a correr, tinham sacos na mão e não eram azuis. De repente, o homem gordo pegou no rapaz da lua e entregou-o a um desses seres. A felicidade encheu-lhe a alma. Até que se ouviu: “Como funciona?” Depois de várias experiências falhadas, o rapaz da lua foi abandonado, já sem pernas, braços e cabeça no meio de uma enorme poça de... tinta azul.

In Visão – 04.12.03
Suplemento Especial de Natal

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